Texto bem bacana falando um pouco do processo de independência do único país estreante dessa Copa do Mundo.
Pra quem nós vamos torcer? Pro Brasil,
é claro. Em poucos momentos, pra não dizer nenhum, somos nacionalistas ou
nos unimos em torno de algum evento como acontece com a Copa, exceção feita à
semana final de uma novela.
Mas, dentre as 32 seleções e os
64 jogos da Copa, é normal acontecer uma torcida paralela para outra Seleção
enquanto o Brasil não joga. Os motivos são diversos: parentes em um país, um
jogador do seu clube em campo ou até motivos políticos e sócio-culturais.
Entre a simpatia das seleções
africanas, a força das europeias e a vizinhança das sulamericanas, uma seleção
se destaca – a Bósnia e Herzegovina. De cara, podemos dizer que ela é a única
estreante em Copas desta edição. É uma zebra, pouco conhecida e pouco badalada.
De quebra, os Dragões estreiam contra a Argentina, domingo, no Maracanã.
Não é pouca coisa não.
Mas não é por isso que o país
comemorou a classificação como se fosse um título mundial.
O futebol tem sido o motivo de
maior alegria dos bósnios nos últimos 20 anos. A Bósnia e Herzegovina (região
majoritariamente croata, ao sul do país) , era o estado mais miscigenado da
Iugoslávia, a “Jerusalém dos Bálcãs”, onde bósnios, croatas, sérvios, ciganos e
turcos conviviam – votou pela sua independência do governo controlado pelos
sérvios em 1992, seguindo Croácia, Eslovênia, depois Macedônia, Montenegro e
Kosovo.
Os governantes sérvios, orquestrados pelo líder Slobodan Milosevic
abriram fogo contra a população desarmada e iniciaram uma guerra que
ficou conhecida como o pior massacre na Europa após o Holocausto. O país de 4
milhões de habitantes acabou a guerra civil com metade da população – 1,4
milhões de refugiados e 100 mil mortos. Ignorados pela comunidade interacional,
os mais de 3 anos de conflito culminaram com o Massacre de Srebrenica, o
assassinato de mais de 8 mil homens – entre 12 e 70 anos – na cidade de mesmo
nome. As mulheres jovens foram enviadas para campos de estupro. Está tudo
gravado, tudo disponível ali no youtube. O general sérvio Ratko Mladic divide a
população em ônibus enquanto os soldados da ONU choram, sem ação. Os mais de 8
mil mortos foram enterrados em valas coletivas e novos corpos são velados todos
os anos, no dia do massacre, 11 de julho. Alguns conseguiram escapar pela floresta,
andando dias até a cidade de Tuzla. Muitos morrem com facas (noz, em sérvio) e
enforcadas com arames (zica, em sérvio). Por isso, até hoje alguns torcedores
da Sérvia ainda cantam nos estádios “Noz, zica, Srebrenica” (“faca, arame,
Srebrenica”), deixando claro que o futebol carrega toda a complexa e violenta
história política da região.
A alguns quilômetros dali, em
Sarajevo, a população sobrevivia como podia ao cerco de 3 anos imposto à
cidade. Sitiada, bombardeada, sem água, sem energia, Sarajevo via seus civis
morrerem ao andar na rua, sob a mira dos snipers sérvios, que atiravam do alto
das montanhas. Em abrigos, crianças se amontoavam. entre elas estava o menino
Edin Dzeko, que não imaginava que, 20 anos depois, estaria vivo e no Brasil,
representando o seu país que resistiria a guerra e se tornaria independente.
Este cerco, somado ao massacre de Srebrenica, à destruição de várias vilas e da
milenar Mostar, não deixam dúvida – o povo bósnio sofreu genocídio, conforme
declarou o Tribunal de Haya. Os líderes sérvios foram protegidos pela população
do país vizinho e nunca pagaram por seus crimes de guerra.
Com o bombardeio de um mercado em
Sarajevo, enquanto a população fazia fila por pães, a comunidade internacional
finalmente interveio e forçou um “Acordo de Paz”. O mapa do país foi desenhado
em Dayton, nos EUA e tem peculiaridades bizarras: o acesso ao mar é garantido
por cerca de 20 km de litoral através de uma espécie de corredor que cruza a
Croácia até o mar. A Bósnia e Herzgovinafoi dividida em duas entidades
independentes – A Federação Bósnia, que abriga bósnios e croatas, e a Republika
Srpska, dos sérvios. Assim, cidades bósnias como Srebrenica passaram ao
controle dos sérvios, legitimando o genocídio ali ocorrido. a guerra acabou,
mas a divisão política, ideológica e religiosa (servios são ortodoxos, croatas
católicos e bósnios muçulmanos) ainda existe e compromete o desempenho do país.
Os sérvios não se sentem parte do país e nunca entram em acordo com o governo
da Federação bósnio-croata. Assim, o hino bósnbio foi substituído por um novo,
cuja letra nunca foi aprovada. Por isso, quando toca o hino da nova
Bósnia, a torcida do país canta o hino antigo por cima, criando a maior
confusão. Os sérvios da Bósnia já pensam na separação da Republika Srpska – 49%
do território bósnio e o presidente da Republika Srpska, Milorad Dodik,
declarou que não torce pela Seleção da Bósnia e que não daria um centavo para
os Dragões. “Chora Dodik, não precisamos de sua ajuda, Bósnia tá no Brasil e os
sérvios? Ninguém viu” diz a canção “Placi Dodik” que ganhou ai internet, entre
outras tantas piadas e gozações neste momento único de afirmação da
independência bósnia. A BiH está em êxtase, em festa. Não é pra menos, o país
que quer esquecer o passado e construir o futuro encontrou no futebol o motivo
de maior orgulho de sua história. Quando os Dragões entrarem em campo logo
mais, entre exilados e sobreviventes, estarão escrevendo o capítulo mais feliz
da história do seu país. Por isso, seja qual for o resultado, essa Copa já é da
Bósnia Herzegovina. Sellam Alejkum, que encontrem a tão sonhada paz!
Marcelo Adnet
Texto originalmente postado aqui
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