Muito além de 22 marmanjos correndo atrás de uma bola. O
esporte mais popular do planeta é também reflexo da sociedade em que vivemos
O Brasil foi jogar bola no Haiti
e isso não teve nada a ver com preparação para a próxima Copa. Quem estava em
campo era a diplomacia. Para comprovar, basta ver a cobertura da televisão: em
vez da Fifa, era a ONU que aparecia nas imagens. No lugar do centroavante, era
o presidente do país que atraía a atenção dos repórteres. Não foi a primeira
nem será a última vez que futebol e política se misturaram.
É por causa dessa proximidade que
alguns estudiosos olham para o gramado e enxergam um retrato perfeito da
sociedade. A bola está na moda entre os analistas políticos.
Se você nunca tinha pensado que
22 jogadores em campo podem resumir o mundo, deve estar com uma dúvida: por que
justamente o futebol, e não o cinema ou a literatura? “A arte sempre será
produto da imaginação de uma pessoa. O futebol é parte da comunidade, da
economia, da estrutura política. É um microcosmo singular”, diz o jornalista
americano Franklin Foer, autor de How Soccer Explains the World (“Como o
Futebol Explica o Mundo”, sem tradução para o português). Não apenas singular,
mas global. É o esporte mais popular do planeta. Uma fama, aliás, que tem
razões pouco esportivas. “O futebol nasceu na Inglaterra numa época em que os
ingleses tinham um império e viajavam por muitos países. Ferroviários levaram a
bola para a América do Sul, petroleiros para o Oriente Médio”, afirma Foer.
Mas não vá confundir o papel do
esporte. Ele faz entender, mas não muda o mundo. “Não se trata de uma força
revolucionária capaz de transformar uma nação. É apenas um enorme espelho que
reflete a sociedade em que vivemos”, diz Simon Kuper, autor de Football against
the Enemy (“Futebol contra o Inimigo”, sem versão brasileira). A bola está em
jogo: nas próximas páginas, você vai ver como o futebol explica...
A Reforma protestante
Na Escócia, quando Glasgow
Rangers e Celtic se enfrentam, estão dando continuidade a uma rivalidade que
começou antes de o futebol existir. Mais exatamente no século 16, quando a
Reforma protestante varreu o país matando católicos. Muitos morreram. Os que
sobraram passaram o tempo acalentando a fidelidade ao papa, o sonho de independência
e, mais tarde, o amor ao Celtic. Do outro lado da cidade, os protestantes se
aliaram à monarquia inglesa e fundaram o Rangers – em que, até 1989, católico
nenhum podia entrar.
Se rivalidade pode ser medida,
Rangers e Celtic fazem o clássico de maior rivalidade do mundo. O ódio mortal
desafia todos os intelectuais que afirmam que a civilização aplaca a barbárie e
dissemina a tolerância. Glasgow é uma cidade rica, culturalmente criativa,
politicamente liberal. E mesmo assim algumas de suas figuras mais proeminentes
são capazes de ir ao estádio cantar hinos como “estamos mergulhados até o
joelho em seu sangue”.
Católicos e protestantes se
matando parece coisa da Irlanda do Norte, você deve pensar. Acontece que por lá
não há mais espaço para esse tipo de convivência. O católico Belfast Celtic
fechou suas portas em 1949, após uma partida em que a briga das arquibancadas
chegou ao gramado e jogadores foram espancados. Com a ajuda da polícia. Pela
paz da nação, deixaram o futebol de lado.
A guerra Iugusláva
Quando o juiz apitou o início de
Dínamo Zagreb versus Estrela Vermelha, em 1990, começou uma guerra sangrenta.
Naquele dia, a união de repúblicas que formava a Iugoslávia foi sepultada.
O visitante Estrela Vermelha
vinha de Belgrado, na Sérvia, capital iugoslava. O Dínamo era de Zagreb, da
separatista Croácia. E os torcedores estavam lá para protestar: o estádio se
transformara num caldeirão nacionalista. Quando a briga começou, um helicóptero
teve de resgatar do campo os jogadores do Estrela Vermelha. Os croatas haviam
estocado pedras para o ataque. As grades que separavam as torcidas
desapareceram – foram dissolvidas com ácido. Os sérvios não recuaram. Pela
primeira vez em 50 anos a Iugoslávia vivia um confronto étnico. Para os que
defendiam um conflito armado, era a gota d’água.
Futebol e guerra não se
separariam mais. E no centro desse casamento estava o Estrela Vermelha. O chefe
das torcidas organizadas era um sujeito conhecido como Arkan, que mais tarde
seria apontado como um dos maiores criminosos de guerra da Iugoslávia. Arkan
recrutava torcedores mais violentos para atuar como paramilitares na Bósnia –
entre os atrativos, ele oferecia visitas de jogadores do Estrela Vermelha para
combatentes feridos. Estima-se que esses torcedores-soldados tenham matado cerca
de 2 mil pessoas. A maioria civis. Quase todos com requintes de crueldade.
O Irã
Não há solo tão fértil para o
florescimento de teorias conspiratórias como o do Oriente Médio. Uma delas diz
que o governo do Irã sabota a seleção de futebol. Faltam evidências para
acreditar na tese. Mas que os chefes muçulmanos torcem contra, isso eles
torcem. E com motivo.
A rixa começou quando o regime do
xá Reza Pahlevi fez do esporte um sinônimo de modernidade. Mesquitas eram
confiscadas e davam lugar a campinhos. O xá era fanático pelo Taj, de Teerã.
Sua esposa, pelo rival Persépolis.
Ao tomarem o poder, em 1979,
fundamentalistas tentaram cooptar o esporte, cercando o campo com placas
“publicitárias” anti-Israel e Estados Unidos. Não deu certo, e o futebol
tornou-se símbolo da resistência. “No estádio você pode gritar contra o regime.
É o único lugar livre. Focos oposicionistas nascem lá”, diz Simon Kuper. Jovens
tomam a arquibancada para pedir reformas. Pior: atletas como Beckham, cabeludo,
tatuado e mulherengo, vendem um estilo de vida que influencia adolescentes e
assombra religiosos. Pior ainda: se a seleção vai bem, a euforia toma conta do
país e faz até as mulheres exigirem participar da festa, aos gritos de “não
fazemos parte desse país?”. É muita subversão para um aiatolá só.
Os comunistas
Como quase tudo no mundo
comunista, o futebol soviético era infestado pela burocracia. A cada clube
correspondia uma parte do poder: o CSKA pertencia ao Exército, o Dínamo Moscou
à KGB, o Lokomotiv, adivinhem, era dos ferroviários. Só o Spartak Moscou não
era de ninguém. Quer dizer, pertencia a um louco chamado Nikolai Starostin, que
por conta da ousadia de possuir um time foi defenestrado para a Sibéria.
Na ditadura soviética, torcer era
um ato político. Foi nos estádios, durante jogos do Yerevan Ararat ou do Dínamo
Tblisi, que países como Armênia e Geórgia começaram suas lutas pela
independência. Starostin, no entanto, fundou seu time não para bajular oficiais
do governo, mas para agradar fãs de futebol. A massa adorou. O governo nem
tanto. Quando o Spartak foi bicampeão em 1938 e 1939, deram um jeito de
condenar o cartola a dez anos no gulag stalinista – onde, ironicamente, era
disputado pelos chefes dos campos para ser técnico do time. Enquanto isso, na
capital, o regime iniciou seu expurgo da história. O rosto e o nome de
Starostin sumiram de fotos e registros oficiais. O tratamento clássico
destinado aos inimigos do comunismo.
Na Alemanha Oriental, o
queridinho do governo era o Dínamo, de Berlim. Assim como grande parte dos
clubes de mesmo nome na Cortina de Ferro, o Dínamo era o time da polícia
secreta. Não é surpresa, portanto, que tenha ganhado dez títulos nacionais
seguidos nos anos 70 e 80. “Nos regimes comunistas, todo dinheiro ia para a
capital. E essa política incluía também o futebol”, diz Simon Kuper. O clube
vivia um paradoxo: provavelmente era ao mesmo tempo o clube mais vitorioso e o
mais odiado do mundo. Quando não estava dando pitacos no time, sua diretoria se
reunia na cúpula da Stasi, como era conhecida a brutal polícia secreta alemã.
Sendo assim, berlinense que gostava de futebol odiava o Dínamo e sonhava em
reencontrar o Hertha Berlim, o time que ficara do lado ocidental da cidade
quando o muro foi erguido. No primeiro jogo após a unificação da Alemanha, o estádio
do Hertha recebeu 59 mil torcedores – num jogo da segunda divisão. Então os
alto-falantes agradeceram a presença do corpo de diretores do Dínamo Berli.
Houve revolta nas arquibancadas. No jogo seguinte, o público pagante não passou
de 16 mil pessoas.
Collor e Lazzaroni
O técnico Sebastião Lazzaroni e o
presidente Fernando Collor têm em comum mais do que terem sido escorraçados de
seus cargos. Talvez você tenha esquecido, mas o Brasil foi eliminado da Copa
sob a tutela de Lazzaroni, em 1990. Mesmo ano em que Collor assumiu a
Presidência. Além de contemporâneos, eles foram ícones de uma onda que varreu o
país na virada da década: a febre dos importados.
Era uma fase em que idolatrávamos
o que vinha de fora – a solução dos problemas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário