A família que cabe numa Kombi
Jason,
Angela e Bode no Rio, após três anos e 80 mil quilômetros na estrada. Eles largaram os confortos do “american way of life” para viver dentro da Kombi Westfalia ano 1971 |
Antes de apagar as quatro velinhas do bolo, o filho fez o
pedido: “Queria passar mais tempo com meu pai”... E o que poderia virar tema de
um livro de auto-ajuda bem piegas se tornou uma aventura internacional.
Jason Rehm é o pai que vivia ocupado com o trabalho,
hipertenso e em crise de meia idade. Angela, a mãe com cabeça aberta,
companheira de muito tempo. E Bode (o nome é esse mesmo) é o garoto que
inspirou toda essa história ao ter seu desejo atendido.
Em agosto de 2009 eles largaram uma rotina com os
tradicionais confortos da vida moderna na cidade de Alameda, na Califórnia,
para se dedicar a uma viagem de 12 meses a bordo de uma Kombi fabricada em
1971. Mas eis que, três anos e meio após a partida, a família continua na
estrada.
Devagar e sempre
Saíram dos EUA, subiram para o Canadá e, depois, desceram
pelo México. Daí tomaram — lentamente, claro — o rumo da América do Sul. Há
duas semanas chegaram ao Rio para passar uns dias. Onde vão parar? Nem eles
sabem...
— Quando completamos o ano previsto inicialmente, estávamos
na Costa Rica. Na dúvida sobre o que fazer, resolvemos continuar — conta Jason,
um engenheiro com especialização em foguetes.
O mais difícil foi tomar a decisão de desatar os laços com a
rotina e partir. Como o menino só entraria na escola no ano seguinte, pareceu o
momento certo.
— Há muita gente que espera a aposentadoria para viajar.
Mas, aos 65 anos, a disposição já não é mais a mesma — pondera o aventureiro.
Entre a ideia inicial e a ida para a estrada, passou-se um
ano.
— O primeiro passo foi avisar a todo mundo que iríamos sair
em uma longa viagem. Assim não haveria como voltar atrás — explica Angela.
Os amigos deram força e ajudaram no que puderam, mas os pais
do casal acharam que era loucura.
Depois, chegou a hora de pedir demissão. O chefe não aceitou
e propôs um acordo: Jason passaria a ser uma espécie de consultor online,
fazendo seu trabalho no computador e enviando de onde estivesse. É a situação
perfeita, já que permite à família viajar com independência econômica, sem depender
de patrocinadores.
No ano de preparação, a Kombi Westfalia (modelo alemão com
teto móvel e equipada para camping) foi inteiramente restaurada. Todos os bens
que o casal tinha foram vendidos ou doados. E, assim, a família fugiu da
armadilha do “american way of life”: trabalhar cada vez mais para acumular
bens.
— Tudo o que temos hoje está dentro do carro e não sentimos
falta de nada do que possuíamos antes — jura Jason.
Bermuda, vestidinho de alça, sandálias de dedo... No estilo
de vestir, Jason e Angela estão mais para um casal de classe média carioca do
que para hippies clássicos. A vida deles também é quase normal e inclui rotinas
como acordar, trabalhar, dirigir, cozinhar. A diferença é que, a cada fim de
tarde eles têm que buscar um local para estacionar (geralmente um camping ou
uma praia). O quintal é o mundo.
Carro que abre portas
Jason é fanático por velhos Volkswagen. Sempre teve Fusca e
dirigia um Karmann-Ghia antes de embarcar na Kombi:
— Quando há algum problema iminente, esses carros dão sinais
bem óbvios e eu já sei o que está errado — diz.
Nesses 80 mil quilômetros, foram consumidos 16 amortecedores
e o motor teve que ser retificado uma vez. Há constantes probleminhas, mas
Jason consegue consertar tudo.
Um dia, no meio do Salar de Uyuni, nos cafundós da Bolívia,
a familia acordou e se viu no meio de um lago de água salgada. A fiação entrou
em curto, mas os conhecimentos do motorista foram suficientes para desenguiçar
o carro.
— Há um monte de gente viajando em motorhomes enormes ou
utilitários a diesel, como as Toyota Hilux. São veículos ótimos. A diferença é
que a Kombi chama a atenção por onde passa, abrindo sorrisos e portas — afirma
o viajante.
Outras vantagens do pão de fôrma da Volks são a mecânica
simples, a abundância de peças pela América do Sul e a valentia ao enfrentar
buracos na Nicarágua ou estradas de rípio na Patagônia.
Do abandono à glória
A casa rodante dos Rehm já foi um carro abandonado. Rebocado
pela polícia da cidade californiana de Oakland (vizinha a Alameda), passou nove
meses no depósito sem que alguém o reclamasse. Na falta de um dono, o veículo
foi leiloado. Saiu por US$ 800, estava um caco, mas tinha potencial: toda a
mobília original da Westfalia estava no lugar.
Na desmontagem para a restauração, foram descobertas
sementes de maconha.
— Imagino que essa Kombi era usada para vender drogas —
diverte-se Jason.
Depois, lanternagem completa, pintura, nova tenda e um motor
1.600 de dupla carburação zero-quilômetro. Assim, a casinha se tornou confiável
para qualquer viagem.
Quase todos os equipamentos da Kombi ainda são os mesmos que
saíram da fábrica de carrocerias Westfalia em 1971 (por coincidência, o ano de
nascimento de Jason e Angela). A mobília básica nos 7m² do interior inclui uma
cama de casal que vira banco e uma pequena cozinha.
Os únicos itens acrescentados foram uma cama para Bode, no
teto da Kombi, e uma geladeira Engel elétrica (a original tinha que ser
carregada com gelo). Sobre a capota, duas placas solares ajudam a alimentar
tanto a geladeira quanto o computador. Banheiro? Só em áreas de camping ou
postos de gasolina.
Uma curiosidade: até na cor a Westfalia da família
californiana é idêntica à que pertenceu ao escritor argentino Julio Cortázar e
sua companheira Carol Dunlop. Batizada de “Fafner, o dragão”, a Kombi levou o
casal de beletristas em uma viagem pela França e virou personagem do livro “Os
autonautas da cosmopista”, de 1982.
Se, antes, os parentes de Jason e Angela estavam
preocupados, três anos depois todos apoiam a ideia. A mãe da viajante, por
exemplo, pegou um avião e veio ao Rio encontrar o neto. Um blog permite que as
pessoas queridas saibam por onde anda o casal.
— No começo, se esforçaram para pôr medo na gente, mas o que
conhecemos do México até aqui foram povos abertos e receptivos, além de lugares
lindos — lembra Angela.
Na lista de melhores paradas, os aventureiros citam Zorritos
(Peru), Sucre (Bolívia) e Torres del Paine (Chile).
Bode ama essa vida em que cada dia é uma aventura. Em vez de
sala de aula, o menino aprende in loco: já visitou as ruínas de Machu Picchu,
viu a fauna das Ilhas Galápagos e da Patagônia, aprendeu espanhol em dois anos
pela América Latina e agora já arranha o português. Angela faz as vezes de
professora e baixa livros escolares pelo computador.
— A principal lição é de que exite um mundo fora dos Estados
Unidos — diz o pai.
Mas um garoto de oito anos não sente falta de amigos?
— Ele é muito social e acaba fazendo amizades por onde passa
— afirma a mãe.
Jason dirige a maior parte do tempo, mas Angela também pega
o volante. Vão sem pressa, a 80km/h. Levam um mapa todo rabiscado com os
possíveis destinos, mas nada é 100% planejado. Pode ser que, numa decisão de
momento, passem alguns dias em uma cidade não prevista em qualquer guia.
Daqui, a família sabe apenas que tomará o rumo Norte (até
Belém, de preferência pelo litoral) e que tem que sair do Brasil dentro de três
meses, quando vencem os vistos de permanência. Depois, tentarão embarcar a
Kombi em um navio “para a Europa, a Ásia ou a África”. Vago assim...
Até quando vai esta viagem?
— Continuaremos enquanto todo mundo estiver feliz — prevê
Jason.
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